A TRINDADE


DIGRESSÕES SOBRE UM TEMA JUNGUIANO
ESPÍRITO -PERISPí RITO-CORPO.
A MANIFESTAÇÃO TRINA DO SER NO UNIVERSO
O Criador é visto como trino, não apenas no cristianismo, mas também em várias outras tradições espirituais. Se somos a imagem e semelhança de Deus (Gn.1 ,26-27), então nada mais justo do que nos vermos como uma tríade - corpo, alma (perispírito)* e espírito - ao invés de uma visão dualista do homem.
Em outras oportunidades comentamos como o cristianismo veio a se tornar dualista em relação à vida, influenciado pelo maniqueísmo no início da Idade Média. A visão cristã do homem, dividido entre um corpo e uma alma, é o seu melhor exemplo. Até onde nos foi possível rastrear, esse não era o ponto de vista de Jesus nem da Igreja nos primeiros tempos. Paulo de Tarso, citado acima, nos apresenta o modelo de um "tripé existencial", bem mais estável que a divisão corpo/alma que nos dilacera.
Nossa época é ainda refém do racionalismo cartesiano. Só aquilo que é comprovado como realidade física é considerado verdade. Jung chamou-o "estranho pressuposto". Mas trata-se ainda de uma abordagem calcada na visão medieval. Apenas a cisão corpo/ alma foi substituída pelo dualismo mente/matéria, o que tornou a hipótese cartesiana mais operacional do ponto de vista científico. Descartes, pessoalmente, nunca se declarou materialista, mas seu legado serviu de matriz para todo materialismo moderno.
O Iluminismo deixou-nos essa herança: a crença, por um lado, de que o nascimento original de Cristo foi um acontecimento físico e, por outro, a descrença de que tenha ocorrido, por ser considerado fisicamente impossível. Essa divergência é logicamente insolúvel. Por isso, seria melhor que os contendores abandonassem essas discussões estéreis que a nada levam. Segundo Jung, ambas as partes têm lá suas razões e chegariam mais facilmente a um acordo se renunciassem à palavrinha "físico". Tal conceito não é o único critério de verdade, pois há também realidades psíquicas, que não podem ser provadas ou negadas do ponto de vista físico. Todo enunciado religioso seria dessa categoria.
O sentido espiritual evidencia-se por si. Assim, o sentido e o espírito do Cristo estão presentes em nós e podemos percebê-lo sem recorrer a milagres. Não negamos que a sua presença vital seja, às vezes, acompanhada de fenômenos extraordinários; mas esses úlltimos não substituem e muito menos produzem o conhecimento espiritual. A teologia tradicional diria, usando outras palavras, que "a fé é um dom de Deus".

OS CORPOS DO ESPÍRITO
O fato de que os enunciados religiosos se acham muitas vezes em oposição às leis da física é uma clara demonstração da autonomia do espírito, e também de uma certa independência psíquica, em relação às realidades do mundo físico.
Podemos abordar a realidade de vários pontos de vista. O dualismo religioso é apenas um deles. Privado, porém, do "tripé existencial", torna-se frágil e instável. A qualquer tropeço da nossa parte, cai facilmente no dogmatismo ou no seu parente próximo, o fundamentalismo. Existem outras abordagens que falam em sete corpos ou níveis, como no Voga, por exemplo. Já a árvore sefiroidal da Cabala, num dos enfoques que a compara ao ser humano, vai dividi-lo em 10 partes, as sefirotos. E assim por diante, conforme a tradição.
A abordagem tripartite, no entanto, parece ser de todas a mais simples, segura e eficaz. O princípio espiritual aglutina corpo e alma. Impede sua dissociaação arbitrária, pura criação mental, sem qualquer base na realidade, pois a vida é una. No dizer do evangelista, "O vento sopra onde quer, e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai. Assim é todo aquele que nasceu do Espírito." (Jo.3,8). Assim, a existência física é permeada tanto pela psique como pelo espírito. A psique permeia a nossa vida física, mas deixa-se permear pelo espírito. Já o espírito permeia tanto a existência física quanto a psíquica. Em outras palavras, o mais sutil permeia o mais denso que, por sua vez, é permeado por aquele.

IMANÊNCIA E TRANSCENDÊNCIA
Os enunciados religiosos têm suas raízes em processsos inconscientes e transcendentais. Como uma árvore invertida, têm sua parte visível- seu tronco e sua copa - nesse mundo físico, mas seu lado invisível deita raízes no céu, os mundos psíquico e espiritual. O termo "Deus", por exemplo, expressa uma imagem ou conceiito verbal que sofreu muitas mudanças ao longo da história. Podemos conceber um Deus imanente, como um agir em perpétuo fluxo, transbordante de vitalidade e que se transfunde num número interminável de formas; mas também podemos concebê-lo como transcendente, um Ser eternamente imóvel e imutável.
Trabalhamos com imagens e representações que dependem de nossos condicionamentos e fantasias. Sua origem transcendental, no entanto, nos garante que essas imagens e representações não variem de forma caótica e ilimitada, relacionando-as com alguns poucos arquétipos universais. Tais arquétipos, incognoscíveis em si, só podem ser percebidos de maneira difusa e incompleta, de que os enunciados religiosos dão testemunho. É bom que se o diga, a própria consciência e matéria também nada nos dizem a que vieram.
Todos os enunciados religiosos nos chegam por meio da consciência humana, sob influências internas e externas a ela. Todo esse universo de representações é constituído de imagens antropomórficas e, portanto, vulnerável à crítica racional; mas, por outro lado, é preciso não esquecer que se assenta em arquétipos, dotando-o de um certo fundamento emocional que o deixam imune à razão crítica.
Avançando um pouco mais, as afirmações das Sagradas Escrituras podem ser vistas como manifestações da própria alma, ainda que possamos ser acusados aqui de "psicologismo". Os enunciados da consciência podem não passar de enganos, mentiras e outras arbitrariedades, mas não os enunciados da alma. Em primeiro lugar porque ultrapassam os limites de nosso pensar consciente comum e referem-se a realidades que vão além da consciência. Trata-se de fenômenos espontâneos que escapam ao nosso arbítrio. Por isso mesmo, podemos atribuir-lhes certa autonomia. Devemos considerá-los não só objetos em si como também sujeitos dotados de leis próprias. Vale dizer, reconhecer-lhes o caráter espontâneo e a intencionalidade.
Ver tais arquétipos tanto como sujeito quanto como objeto encontra seu paralelo na física quântica, ao não separar o observador do fenômeno observado, consiiderando-os em seu conjunto. Esse duplo ponto de vissta conduz a um duplo resultado: de um lado, um relato "objetivo" sobre o que eu faço com esse arquétipo-objeto; e de outro lado, um relato "subjetivo" do que esse arquétipo-sujeito pode fazer comigo. Abordagens dessa segunda espécie é que podem conduzir a afirmações aparentemente irracionais do tipo "Creio porque é absurdo!" (Tertuliano) e que devem ser entendidas no contexto em que foram ditas.
(alma (perispírito): o autor usa o termo alma neste artigo para designar a totalidade perispiritual do ser, diferente de Kardec, que utilizou o termo para especificar o espírito enquanto encarnado). Carl Gustav Jung
Revista Cristã de Espiritismo
publicado por SÉRGIO RIBEIRO às 20:18