OS LIMITES DA LIBERDADE

"Em que condições poderia o homem gozar de absoluta liberdade?"
"Nas do eremita no deserto. Desde que juntos estejam dois homens, há entre eles direitos recíprocos que lhes cumpre respeitar; não mais, portanto, qualquer deles goza de liberdade absoluta".("O Livro dos Espíritos", questão nº 826.).
Um náufrago vem ter a uma ilha deserta. Constrói tosca habitação e ali se instala. Sua liberdade é plena. Movimenta-se à vontade. Faz e desfaz, conforme lhe parece conveniente, senhor absoluto daquela porção de terra.
Passados alguns meses surge outro náufrago. A situação modifica-se. O primeiro experimenta limitações. A não ser que se disponha a eliminar o recém-chegado, descendo à barbárie, forçoso será reconhecer que seu direito de dispor da ilha esbarrará no direito do companheiro em garantir a própria sobrevivência. Terão, pois, que dividir os recursos existentes - água potável, animais, peixes, vegetais e o próprio espaço físico, se vivem em habitações separadas. Pela mesma razão sua liberdade restringir-se-á, na medida em que outros náufragos apareçam.
Algo semelhante ocorre na vida comunitária, onde nossa liberdade é relativa, porquanto deve ser conciliada com a liberdade dos concidadãos, considerando que o limite de nosso direito é o direito do próximo. A inobservância desse principio fundamental gera, invariavelmente, a desordem e a intranqüilidade. As implicações dessa equivalência de direitos são extensas. Fácil enunciar alguns exemplos:
Não nos é lícito, na vida comunitária, dar livre expansão a impulsos como o de transitar de automóvel pelas ruas, à velocidade de 100 quilômetros horários; a ninguém é lícito, em logradouro público, postar-se nu, nem ali despejar lixo ou satisfazer determinadas necessidades.
A liberdade de movimentação é restrita. Vedado nos é invadir uma propriedade alheia ou recinto de diversão como cinema ou teatro. Mister sejamos convidados ou nos disponhamos a pagar o ingresso.
Impedidos estamos até mesmo de permanecer na inércia, se fisicamente aptos, porquanto não nos pertencem os bens comunitários. Alimentos, abrigo, roupas, indispensáveis ao nosso bem-estar e à própria subsistência, pertecem àqueles que os produzem. Somos chamados a produzir, também, com a força do trabalho, a fim de que, em regime de permuta, utilizando um instrumento intermediário - o dinheiro -, possamos atender às nossas necessidades.
A perfeita compreensão dos deveres comunitários, que restringem a liberdade individual, é virtude rara. Por isso existem mecanismo destinados a orientar a população e conter suas indisciplinas. Há leis que definem direitos e obrigações. Há órgãos policiais para fiscalizar sua observância. Os infratores sujeitam-se às sanções legais que podem implicar até o confinamento em prisões por tempo determinado, compatível com a natureza dos prejuízos causados a alguém ou à comunidade.
Quanto maior a expansão demográfica e a concentração urbana, mais difícil o controle da população. E há infrações que nem sempre podem ser enquadradas como delitos passiveis de punição ou nem sempre podem ser rigorosamente detectadas e corrigidas pelas autoridades.
Assim ocorre com o industrial cuja fábrica despeja poluentes na atmosfera e nos rios; o jovem que transita com o escapamento de sua motocicleta aberto, gerando barulho ensurdecedor; o alcoólatra que se comporta de forma inconveniente na rua; o fumante que, em recinto fechado, expira baforada de nicotina, obrigando os circunstantes a fumarem com ele; o pichador de paredes que polui cultural e moralmente a cidade, com frases de mau gosto e obscenidades; o maledicente que se compraz em denegrir reputações e muitos outros que revelam total desrespeito pelos patrimônios individuais e coletivos da comunidade e pelo inalienável direito comum à tranqüilidade.
Todavia, estes eremitas urbanos, ilhados numa visão egocêntrica de vida, saberão, mais cedo ou mais tarde, que nenhum prejuízo causado ao semelhante fica impune. E se a justiça da Terra é impotente para sentenciar os infratores, a Justiça do Céu, que é infalível, o fará, inelutavelmente, confinando-os em celas de desajuste e infelicidade, na intimidade de suas consciências, até que seja pago o último ceitil de seus débitos, segundo a expressão evangélica.
Aprendemos todos, por experiência própria, que há limites perfeitamente delineados em nossa liberdade de ação, reconhecendo que o mínimo que nos compete, em favor da própria paz, é não perturbar o próximo, tanto quanto estimamos que ele não nos perturbe.
Richard Simonetti
Página extraída da Revista Reformador, Dezembro, 1983.
publicado por SÉRGIO RIBEIRO às 03:13