ANO NOVO!
Ano Novo! Ano Bom!
Para quantos, aí, esta exclamação equivalerá ao “Terra! terra!” gritado pelo gajeiro que, outrora, no cesto de gávea da nau acossada pelo temporal, vigiava, ansioso, terra onde se abrigassem!
Para quantos ele traduz a única esperança longínqua, como para um misero náufrago que se debate na agonia da morte, entre o mar e o céu, agarrado a um frágil destroço do seu navio, a asa branca de uma vela perdida no esfumado plúmbeo do horizonte, representa a salvação! Para quantos, meu Deus, para quantos!
Ano Novo! Finda hoje o ano velho. A humanidade pára e olha para trás. Toma fôlego nesta carreira incessante e desordenada da vida. Reflete, rememora e chora ou sorri, consoante a marcha feita. Por cada um que sorri ao lembrar-se de alegrias que gozou, de felicidades que fruiu, quantos chorarão amarguradamente ao recordarem bens que perderam, felicidades que se esvaíram, dores que lhe pungiram o ser?
A quantos a saudade torturará nas suas algemas aveludadas, a quantos matará com o doce veneno dos seus filtros?
Quantos olharão para este ano que se vai e cerrarão desesperadamente os punhos, invectivando-o, insultando-o, maldizendo-o, porque não trouxe senão desenganos, porque lhes não deu senão sofrimentos? Meu Deus! Nem eu sei!
Ao olharmos para aí, não vemos senão gritos de blasfêmia ou de aflição! Há risadas de doidos, que são acusações, há sorrisos de resignação que equivalem a sombrias tragédias de dor.
Uns choram entes que lhes fugiram nas asas da morte, para o campo desconhecido; outros, pessoas que se ausentaram para longe, acossadas pelo aguilhão da necessidade, guiadas pela ambição ou pela fome! Outros olham vagamente para o infinito, através de entristecida lente de saudades e lágrimas, como querendo ver, lá, muito longe, o Deus do seu amor, que lhes dê esperanças, que lhes dê forças! E, depois, o pensamento, que acompanhou o fito melancólico do olhar, baixa e rasteja pela terra na busca dolorida dos pais velhinhos que têm, muito longe, perdidos na sua aldeia pobrezinha, dos filhos amados, da esposa, dos amigos, aqui e ali perdidos, como pedaços da sua vida de párias, de expatriados!
E esse pensamento os encontra, envolve, acaricia docemente, enquanto os olhos deixam correr lágrimas, como que derretendo, em gotas, o turvo cristal por onde conduzia ao coração as imagens amadas desses que o pensamento via nas regiões distantes!
Por cada um que diga hoje entristecidamente: “mais um ano” - quantos dirão, em soluçada amargura, com o coração apertado e a alma escurecida - “ainda só mais um”.
Aqueles têm pesar pelo que perdem; estes têm medo pelo que ainda terão de passar aí, e olham para o termo da jornada em que se arrastam, cansados, lacerados, pungidos, como o marinheiro perdido em navio desarvorado olha para o farol, que na costa distante brilha através da cerração e da tempestade, como que gritando-lhe na sua insistência luminosa: Coragem! coragem! que aqui está a salvação! E eles, os desgraçados, lá vão remando, lá vão lutando, em choros convulsos, em gemidos fundos, a braços com a dor, com a fome, com as perseguições, com as calúnias, com a tristeza, com as saudades, olhar fito numa esperança, pensamento elevado ao Deus de misericórdia, suplicando-lhe ânimo para chegarem ao termo da jornada com a consciência de quem cumpre rigorosamente um dever.
Por cada onda mais alterosa que ameaça tragar-lhes o barco, eles supõem perdido o norte com o perderem de vista o farol; mas a onda baixa, o barco passa e eles voltam a ver a luz, já mais perto, já mais acariciadora!
Estes são os tristes! São nossos irmãos, são nossos companheiros na amargura.
Não cogito de saber quantos espíritos fortes, quantas almas de aço, finamente temperadas, acharão piegas o que digo. Se à rijeza da sua têmpera corresponder à pureza das suas consciências e a beleza das suas almas, poderão estranhar esta linguagem, como um feliz da vida estranhará a lamúria aflitiva de quem esmola por ter fome, mas certamente se apiedará desses a quem nem sequer é dado rastejar por sob as mesas onde gozam de seu festim.
Não conhecerão a tristeza das almas compassivas, que choram as suas desditas e as desditas alheias, que se torturam na amarga contemplação dos sofrimentos que aí alanceiam infelizes a quem se não pode levar socorro e a quem nenhum socorro bastaria; não conhecerão as cavernas pavorosas das almas onde tumultua o mal, o negrume daquelas onde vive a dor, a aflição daquelas onde esgarça a saudade. Mas, porque as não conhecem, elas não deixam de existir. Se não podem dar aos tristes um pouco da alegria que lhes sobra, não pensem mal dos que vivem nas gemônias da vida, sofrendo por si ou sofrendo pelos outros.
Nós, tu e eu, cá estamos na paragem costumada, desde que nos conhecemos. Olhamos ambos para mais um ano aí passado e nem tu nem eu podemos sorrir, se não bem pela mágoa das coisas próprias, pela mágoa das coisas alheias.
Quanta desolação vemos estendida como escuro lençol a cobrir o cadáver do ano findo!
Para qualquer parte do mundo que se olhe, vêem-se lágrimas, sofrimentos, maldades. Ë o que há. Não há coração que não tenha sido atingido, no espaço decorrido desde a nossa outra paragem; não há alma que não tenha sido provada. E por cada uma que resiste à prova, quantas sucumbem!
E se com a vista procuramos os lugares simpáticos ao nosso espírito, onde a nossa saudade nos prende e que o nosso amor consagra, então que doloroso pungir! Que fundo pesar, por nós e pelos que vemos! Almas esmagadas, consciências torcidas, afetos partidos! Por toda a parte a desordem e a inquietação; por toda a parte ruínas de caracteres, destroços de vidas! Ruem reputações e ruem os templos! Ardem relíquias seculares, destroem-se belezas artísticas! Aniquilam-se liberdades que foram cimentadas em sacrifícios heróicos, anulam-se conquistas de gerações de santos, de mártires ou de valentes! Arrancam-se esperanças aos corações e substituem-se por confrangedoras agonias; desunem-se parentes e amigos; partem-se convivências, espancam-se crianças que eram o lenitivo e o conforto de infelizes; perseguem-se os homens como quem monteia feras; espalha-se o ódio; a denúncia e a espionagem elevam-se à categoria de virtudes; o saque arvora-se em direito, o arbítrio em Lei, a perseguição em lema! Não mais poder pensar livremente, senão no recesso íntimo de cada cérebro; não mais poder falar livremente, sem receio de que sobre as palavras e sobre quem as pronunciar corram os ferrolhos das casamatas das fortalezas! E para quê? Que tétrica ilusão desvaira aí tanta gente! Mas para que tudo isso, se a Morte espreita constantemente os homens e a cada momento ceifa impiedosamente senhores e escravos, grandes e humildes, perseguidores e vítimas, ricos e miseráveis, triunfa-dores e vencidos!
Parece que um temporal de vesânia se desencadeou sobre a nossa terra! Parece um triste hospital de loucos, onde cada habitante apresenta uma loucura nova! Tudo isso nos lega como lúgubre herança o ano que finda! E, ai de nós! que não vemos que o que vem nascendo, envolto no arrebol dourado da primeira manhã de janeiro, traga, nas suas faixas, promessas de dias mais consoladores! Aqui e ali luzem esperanças como fúlgidas centelhas; mas, são quase sempre tristes ilusões que se esvaem, criadas pelo nosso desejo, alimentadas pelo nosso anseio. Surgem e vão-se, como fogos-fátuos, deixando cada uma mais uma mágoa a assinalar o lugar onde a nossa alma as acalentou!
A vida, aí, é assim! Quem dera que pudéssemos rir dela, como o Eça!
Rir! E ele ri? Crês que ele ria? Atenta! Escuta e ouvirás, no fim de cada casquinada dele, um soluço de dor a estrangular-lhe a alma! Ele ri como um Rigoleto! Ri para os outros, que se encantam com a música dos seus risos; mas, chora, chora lágrimas de sangue vivo, arrancado pela tortura à sua alma de triste!
E quantos rirão assim, aí? Meu amigo, o ano vai findar. Tu dirás, talvez, “ainda só um”!...
Não sei se o poderás dizer com razão, ante a justiça absoluta. Ante a justiça relativa, a que se vê, não posso deixar de reconhecer que a tens. Ë um mal que já passou. Não deixes, porém, que a tua fantasia te abra o coração a novas esperanças cor de rosa. Olha que essas esperanças, como as rosas de que vestem a cor, presto murcham e, ou secam, deixando em nossa vida a amarga saudade dos sonhos lindos, desfeitos, ou apodrecem e dão à nossa sensibilidade a repugnância das coisas que despertam nojo!
Há esperanças que são como os virginais corpos das namoradas: apetecem-se e amam-se, enquanto têm vida; fedem e repugnam depois de mortos!
Não te deixes fascinar pela miragem. Aceita a vida como ela é aí: apanágio da dor, laboratório do aperfeiçoamento.
Se assim o fizeres, não irás chocar, a cada passo, com obstáculos que te farão desesperar.
Segue como tens vindo. Deixa-te guiar pela Consciência, que ainda é o melhor moço que Deus prestou à tua cegueira.
Não prestes ouvidos ao vozear dos outros. Ouve só os que choram, para consolá-los; os que sofrem, para os aliviar.
Não te deixes vencer pelo desalento, nem pelo desespero. Em cada hora Deus põe uma felicidade; e temos, às vezes, mais próxima, aquela que nos cabe, do que podemos imaginar, ainda nas mais fagueiras esperanças a que a nossa fantasia dê vida.
Não olhes mais para trás, senão para tirar lição e para enviar os teus sorrisos e as tuas saudades às recordações boas que o tempo deixou cair na tua vida triste e amargurada.
As tuas afeições, as tuas alegrias, as tuas crenças, as pessoas que amas, não as deixes no passado: - nem os que morreram, nem os que aí tens. Trá-las contigo, prende-as a ti, por modo que para todas haja sempre o presente, ante a tua vista, ou ante o teu pensamento.
Não deixes caída na vala do esquecimento senão a ingratidão dos outros. Os teus próprios atos ou pensamentos maus ante o teu olhar, para emenda e repulsa; os atos dos outros para te apiedares, para perdoares a eles e para os evitares em ti.
E nesta altura da vida, montanha escabrosa e íngreme para ti, onde te tenho vindo acompanhando - ai de mim! - sem te ter prestado auxílio eficaz nem valedor, vou deixar-te, por agora. Olhemos mais uma vez para trás: não para contemplarmos o quadro desolador, efetivamente desolador, que se desenrola à nossa vista; mas, para nos alegrarmos ao ver a distância enorme, eficaz e utilmente percorrida, na ascensão desse Calvário.
Está vista? Toma a tua cruz e segue avante.
Coragem, meu amigo; coragem, meu irmão!
(Transcrito do livro “Do País da Luz”, Fernando de Lacerda,
vol. IV, pags. 211 a 217, 2.a ad. FEB.)
Fonte: Reformador - Janeiro, 1975
Julio Diniz