A TERCEIRA REVELAÇÃO : UMA REFLEXÃO

 
Na primeira metade do século XIX os países europeus eram ainda grandes impérios, que submetiam, pela força militar e não pela ascendência moral ou intelectual, diversos povos à volta do planeta. Se, no século anterior, tinham perdido o controle de suas colônias nas Américas, ainda firme era seu domínio nas terras da África e da Ásia.
 
Naquela mesma época, os ingleses na Índia tratavam a milenar e sapientíssima cultura hindu como um fetiche de povos primitivos, do mesmo modo como faziam na China, no Japão e em outras regiões cujas riquezas econômicas exploravam. Tal depreciação era conveniente, pois ficava fácil alegar que lá estavam como colonizadores necessários e não como ocupantes ilegítimos.
 
A aparente digressão acima com relação ao objeto deste estudo destina-se a mostrar que o conhecimento europeu quanto às civilizações, culturas e crenças estrangeiras ao tempo de Kardec era precário e, quando existente, preconceituoso.
 
Hoje, no entanto, com a TV e a Internet disponibilizando fantásticos instrumentos de pesquisa e dando voz aos pequenos de toda sorte antes emudecidos pela força, não há mais espaço para mantermos o entendimento distorcido de então sobre certas questões.
 
Chegamos, finalmente, ao ponto que queremos abordar. Dizer que a Doutrina Espírita é uma revelação é afirmar algo perfeitamente comprovável. É uma afirmação inatacável.
 
Ir além e dizer que ela é a Terceira Revelação da Cultura Judaico-Cristã parece-nos um pouco mais difícil de provar, posto que uma religião inteira, com milhões de seguidores distribuídos em diversas vertentes, é produto de uma outra revelação na mesma linha cultural de Moisés e do mestre Jesus e anterior, vejamos bem, à Doutrina Espírita. Dez entre dez teólogos que venham a ser por nós consultados comprovarão que Maomé teve uma revelação na linha da tradição judaico-cristã, sendo o Alcorão o código de tal revelação.
 
Ir ainda mais além e afirmar que a Doutrina Espírita é a Terceira Revelação à Humanidade, é, a nosso ver, uma afirmação insustentável. Como poderemos afirmar, após estudarmos o Bhagavad Gita, o Tao Te King, os Sutras, os Anacletos ou quaisquer outras escrituras religiosas dos outros povos, que elas não foram o produto de revelações? Se o fizermos, não seremos honestos em negar-lhes a origem. Se não o fizermos, seremos levianos negando-lhes uma característica cuja existência ignoramos.
 
A seqüência do raciocínio de Kardec no Capítulo I de A Gênese é perfeita, assim como o encadeamento que ali faz entre a revelação de Moisés, a do nosso mestre Jesus e a Codificação. No entanto, saibamos reconhecer que Kardec, como espírito encarnado que era, foi um homem do seu tempo e que, por isso, estava limitado pela percepção cultural do povo ao qual pertenceu, uma percepção eurocêntrica, preconceituosa em relação à cultura dos povos de outros continentes.
 
A Doutrina dos Espíritos, como nos ensinou Kardec, é apenas a porção da Codificação constituída das perguntas e das respostas não assinadas a essas perguntas, isto é, aquelas que Kardec obteve utilizando a técnica intitulada “controle universal do ensino dos Espíritos”. Nem os comentários de Kardec, por mais sábios que sejam, nem as mensagens assinadas pelos comunicantes, por mais elevadas que sejam, fazem parte da Doutrina dos Espíritos e, como tal, devem ser entendidos como opiniões pessoais, dignas de respeito devido ao seu nobre teor e à sua elevada origem, mas sempre questionáveis à luz da razão e do bom senso. Devemos, portanto, ter em mente que, como a identificação do Espiritismo como Terceira Revelação foi produto de um raciocínio de Kardec, uma opinião sua, tal identificação não faz parte da Doutrina Espírita.
 
Para que não sejamos mal interpretados, queremos deixar claro que temos Allan Kardec na mais alta conta, considerando-o um sábio singular, um livre pensador no sentido mais puro do termo, um homem com uma formidável capacidade racional, com um bom senso prático extraordinário e um Espírito de grande evolução que encarnou para cumprir uma missão complexa que lhe foi confiada pelo mestre Jesus devido à sua capacidade intelectual e moral. No entanto, ele próprio nos alertou na introdução de A Gênese para que distinguíssemos entre o ensinamento dos Espíritos e as opiniões pessoais.
 
Creio que o amado leitor possa estar neste instante se perguntando: “Que mal há em chamarmos a Doutrina Espírita de Terceira Revelação, mesmo sabendo que tal identificação é fruto de um raciocínio de Kardec e não um resultado obtido através do controle universal do ensino dos espíritas?”.
 
A resposta está em uma afirmação de Emmanuel, a de que divulgar a Doutrina Espírita é a melhor caridade que podemos fazer para com ela. Ora, como poderemos divulgar nossa Doutrina entre nossos irmãos e irmãs não cristãos e não judeus se já começarmos dizendo a eles que a crença que eles seguem não foi uma revelação?
 
Algumas das sociedades que mais necessitam hoje em dia do esclarecimento e da consolação que o Espiritismo oferece não são de tradição judaico-cristã e a designação do Espiritismo como Terceira Revelação a eles parecerá preconceituosa e sectária, fazendo com que eles provavelmente a rejeitem.
 
Saibamos transcender os limites culturais, respeitando as outras crenças e levando a toda parte do mundo a consolação de que a humanidade tanto precisa. O Espiritismo é para todos, assim como para todos foi, é e sempre será a mensagem de Jesus.
 
publicado por SÉRGIO RIBEIRO às 00:13