IDÉIAS E RESTRIÇÕES
Um dos aspectos mais característicos da Doutrina Espírita é a sua índole, francamente, aberta ao exame de quantos queriam conhecer-lhe os principios e analisá-los à vontade. Isto quer dizer que o Espiritismo não é uma doutrina fechada ou petrificada. É natural, então, que haja discussões, em nosso meio, neste ou naquele ponto, uma vez que nem todos têm a mesma formação, a mesma origem religiosa, o mesmo lastro de experiência. Além de tudo, somos todos espíritos desiguais, reencarnados, por necessidade, na Terra, não é verdade?
A Doutrina, por si mesma, deixou o campo livre para enriquecimentos e novas reflexões. E, se assim não ocorresse, teria ela parado, no tempo, e, por isso mesmo, não poderia acompanhar as mudanças que se operam no mundo. Está bem claro que os princípios gerais, isto é, os pontos nucleares, como se diz, são pacíficos, pois, neles, todos se apóiam, sem discordância. Há, entretanto, opiniões diversas, em relação a outras questões doutrinárias, fora do contexto básico, que é a nossa fonte inconfundível e direta.
Embora a Doutrina nos faça ver que o essencial é o nosso entendimento, sejam quais forem as palavras, verdade é que, ainda, se discute, muito, no meio espírita, ora por causa de palavras, ora por causa de interpretação. Em duas questões do “ O Livro dos Espíritos”, por exemplo, e de um modo bem explícito, a Doutrina faz advertência, sempre oportuna, este sentido: “As palavras pouco importam. Cabe-vos formular vossa linguagem, de um modo que vos possais entender. Chamai as coisas como quiserdes, contando que vos entendais”. (Questões 28 e 153).
Em todos os tempos, sempre, houve muita demanda, por causa de palavras. Temos desses problemas, também na seara espírita, mas não podemos dizer que todas as discussões e, até, algumas polemicas, entre confrades, sejam motivadas, exclusivamente, por expressões consideradas sutilezas verbais. Há discussões de outra ordem, em virtude, justamente, de posições assumidas, seja, quanto aos modos de ver, pessoalmente, os problemas e o papel das instituições.
Tudo isto é humano e, até certo ponto, inevitável. O debate, em muitos casos, é uma necessidade. Mas, debate não é agressão; é troca de idéias, para chegar a um denominador comum, seja qual for o teor das discordâncias. O objetivo, de parte a parte, é procurar a verdade, até onde é possível.
Justamente por isso, não vemos motivo, para que haja animosidade pessoal entre confrades, por causa de controvérsias. Saber discutir, aceitar ou rebater criticas, sem perder equilíbrio emocional, é uma prova de compreensão. Podemos fazer restrições às idéias de um companheiro, em terreno franco, com toda a lealdade, mas o respeito humano e a amizade pessoal não devem sofrer a mínima alteração. Restrições às idéias, e não às pessoas. Quem não aceita críticas, naturalmente, se julga dono da verdade. È triste, lamentável, mesmo, que o ardor de um debate, que devia ficar, exclusivamente pessoais, levando um confrade a ficar “frio” com o outro, apenas, porque discordam, neste ou naquele ponto. Será que, ainda, não sabemos discutir?...
Afinal de contas, a amizade pessoal e o apreço aos valores humanos nada têm que ver com as posições contrarias, neste ou naquele ângulo do pensamento crítico. Temos companheiros dos quais nós discordamos, profundamente, em muita coisa, mas a velha amizade, nunca, se modificou, e não haveria razão para tanto. Por que? Por que não compreendemos, sinceramente, como se pode mudar o tratamento, com um amigo, de uma hora para outra, somente porque houve um choque de idéias. Felizmente, conhecemos muitos confrades nossos, cujo procedimento, sob este ponto de vista é, realmente, exemplar: discutiam, calorosamente assumiam posições, frontalmente, antagônicas, mas tudo isso ficava no plano das opiniões, acima das pessoas. Terminado o debate, que parecia uma batalha de idéias, nada de ressentimentos, nada de prevenções; abraçavam-se e continuavam, lado a lado, trabalhando pela causa espírita. Já vimos, de perto, diversas atitudes desse tipo, aliás, muito enobrecedoras.
A esta altura de nossa vivência, no dia a dia, não podemos compreender como, por exemplo, um confrade, em irmão de ideal, possa chegar ao extremo de cortar as relações com o outro, ou deixar de cumprimenta-lo, com a cordialidade habitual, ou, até, evita-lo nos encontros, apenas, pelo fato de terem tido um atrito de pontos de vista ou terem discutido sobre um tema doutrinário. E, daí? Que tem tudo isso, com a convivência pessoal ou com o intercâmbio de amizade? Por que fazer, restrições, também, às pessoas, se o problema é com as idéias? Afinal, são coisas da Terra, não há dúvidas. Mas, a Doutrina veio para ensinar, e porque veio para ensinar, naturalmente, há de melhorar o procedimento dos homens.
(“Revista André Luiz” – nº 34, de 1983 – São Paulo – SP)