ESPÍRITA NÃO CONDENA NINGUÉM
1. Existe, na tradição forense, uma idéia segundo a qual os espíritas são os jurados que melhor atendem aos interesses da defesa, uma vez que, de acordo com a voz corrente, “espírita não condena ninguém”. Durante mais de trinta anos de atuação na tribuna do júri, não conseguimos comprovar o acerto dessa afirmativa. Constatamos, isto sim, uma grande tendência condenatória entre os seguidores das religiões reformadas, e uma acentuada indefinição entre os católicos, que ora pendem para um lado, ora para o outro.
Como constituem a maioria do universo religioso brasileiro, são, por conseguinte, os mais visados e os que mais sofrem as influências de toda sorte a que se acham sujeitos os jurados de um modo geral. Por isso, torna-se difícil uma conclusão mais concreta a respeito de suas tendências. O certo é que as mais absurdas decisões do Tribunal do Júri, tanto absolutórias como condenatórias, partem, geralmente, de conselhos de sentença dos quais não participam seguidores de outros credos religiosos. Atualmente, com crescimento da Igreja Universal, e de outras que guardam semelhança com ela, o fenômeno vem perdendo sua força, sobretudo no que tange à aceitação pela sociedade dos chamados “crentes”, o que nem sempre acontece com relação ao Espiritismo e aos espíritas.
2. Nenhum argumento sério autoriza a existência desse procedimento, a não ser o preconceito e o radicalismo religioso. Durante algum tempo, quando ainda não conhecíamos nada de Espiritismo, aceitamos tal entendimento sem maiores indagações e sem a menor preocupação de sondar a sua veracidade. Agimos, neste caso, com a tranqüilidade própria dos ignorantes. Mais tarde, já devidamente esclarecidos a seu respeito, constatamos que tudo não passava de mais um dos enormes equívocos que boa parte das pessoas alimenta quanto a ele, Espiritismo.
Verificamos, por outro lado, que os jurados espíritas condenavam ou absolviam, tanto quanto os demais.
É de se lamentar, no entanto, que essa falsa visão não se acha restrita apenas aos não-espíritas, porquanto é perfilhada por muitos que se dizem adeptos da Doutrina.
Trata-se de um dos muitos problemas que a perspicácia de Allan Kardec detectou, conforme se pode ver no capítulo XXIX, item 334, de O Livro dos Médiuns.
O termo espírita carrega, no entendimento vulgar, uma série de conotações eivada de erros e de preconceitos. Abrange um universo enorme, que vai desde os integrantes do sincretismo religioso, sob as suas variadas denominações, até aos seguidores dos cultos e das seitas em que o exotismo ocupa o lugar de maior destaque, passando, ainda, pelas inúmeras veredas de quantos se definem espiritualistas. Essas formas de religiosidade, embora merecedoras de respeito, não guardam nenhuma afinidade com a Doutrina dos Espíritos, e a confusão, consciente ou inconsciente, que se estabeleceu entre elas e o Espiritismo, enseja raciocínios e ilações inteiramente distantes da verdade, como a de se imputar aos espíritas uma conduta de alienação em face das questões sociais. Essa atitude os acompanharia também, quando convocados a julgar seus irmãos pelo cometimento de um ilícito penal, cujo julgamento se inscreve no rol dos que são da competência do Júri Popular, fixada pelo artigo 5o, XXXVIII, da Constituição Federal.
3. O raciocínio peca, contudo, pela total ausência de razão. Ao espírita não é vedado julgar, ainda que desse encargo advenha a inevitável aplicação de uma pena.
Ele, como qualquer outro cidadão, não pode fugir da responsabilidade que o Estado lhe delegou, ao convocá-lo para o serviço do júri. Seria ótimo se a sociedade moderna já não mais convivesse com a criminalidade e que, no lugar das penitenciárias e das cadeias, estivesse edificada uma escola. Todavia, esse grau de desenvolvimento e evolução ainda se acha muito distante de ser alcançado.
A pena, por isso mesmo, no estágio atual da Humanidade, permanece, teoricamente, como o instrumento mais eficaz de que a sociedade dispõe para restabelecer o equilíbrio social abalado pela ação do delinqüente.
A concepção de que o espírita, por uma questão de princípios, não condena ninguém não se harmoniza com o sentimento de responsabilidade que a ele cabe assumir diante de si, de Deus e da sociedade, sob pena de ser considerado, nos termos do magistério de Kardec, mais um “espírita de nome” (a respeito, Revista Espírita, novembro de 1861, p. 495).
4. O que Jesus proscreveu foi o julgamento apressado, afoito, impregnado de má-fé, no qual, muitas vezes, a verdadeira intenção do julgador permanece oculta, a exemplo do que ocorreu no episódio envolvendo a mulher adúltera.
No Sermão do Monte (Mateus, 7: 1 e 2), Ele nos adverte quanto a essa maneira de julgar. Ela é típica do chamado juízo temerário, caracterizado pela impiedade ou ditado pelas aparências que, costumeiramente, enganam.Uma interpretação exclusivamente literal e isolada desses dois versículos poderia levar à absurda conclusão de que toda e qualquer forma de julgamento é defesa aos cristãos. Os juízes de direito seriam, pois, vítimas de uma autêntica “injustiça divina”, porquanto nenhuma esperança teriam quanto à sua vida futura, em face de sua própria atividade profissional.
Não obstante, todos sabemos da sua importância dentro da sociedade, em virtude dos constantes e cada vez mais numerosos conflitos que afloram a todo instante em seu seio, e do elevado índice de criminalidade dos dias atuais.
5. O sentido da proibição se completa e se integra no contexto evangélico através dos versículos 3, 4 e 5 da mesma narrativa de Mateus: – “E por que reparas tu no argueiro que está no olho do teu irmão, e não vês a trave que está no teu olho?
Ou como dirás a teu irmão:
Deixa-me tirar o argueiro do teu olho, estando uma trave no teu?
Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e então, cuidarás em tirar o argueiro do olho do teu irmão”.
De mais a mais, durante o seu messiado, Jesus, em diversas oportunidades, estabeleceu juízos de valor, e, em conseqüência, julgou, contrariando, dessarte, os que sustentam a proibição absoluta do julgamento. Na sua explicação sobre a gravidade e a dimensão das ofensas feitas ao nosso irmão, foi de meridiana clareza ao não excluir do julgamento humano os autores dessas ofensas: “Ouvistes que foi dito aos antigos:
Não matarás; mas qualquer que matar será réu de juízo.
Eu, porém, vos digo que qualquer que, sem motivo, se encolerizar contra seu irmão será réu de juízo, e qualquer que chamar a seu irmão de raca será réu do Sinédrio; e qualquer que lhe chamar de louco será réu do fogo do inferno”. (Mateus. 5:21-23.)
A expressão réu de juízo significa os diversos graus da Justiça humana: a outra, réu do Sinédrio, se refere à Justiça de Deus. A primeira, contudo, não exclui a segunda, em virtude de sua inexorabilidade, traduzida pela regra imperativa do a cada um será dado de acordo com suas obras. Ninguém, mesmo quem já foi compelido a prestar conta de suas ações ao Judiciário terreno, está isento de ser julgado e sancionado pela Justiça Divina. Isso integra o seu mecanismo operacional, que jamais dispensa a “reparação pelo dano causado”, exigindo que, na execução de suas penas, “até o último jota e o último ponto” sejam fielmente cumpridos.
O episódio da interpelação do Cristo acerca da licitude, ou não, do pagamento dos impostos devidos a Roma ratifica inteiramente esse entendimento, uma vez que Ele fez questão de destacar a existência de duas espécies de jurisdição, a humana e a divina, mandando dar a Deus o que era de Deus e ao homem o que lhe pertencia.
6. A única conclusão razoável diante da posição evangélica quanto ao julgamento é a de que ela se reveste de caráter relativo, e não absoluto, não obstante as ratificações posteriores de Paulo e Tiago (Romanos, 14:13 e Epístola Universal, 4:12, respectivamente). Tomada ao pé da letra importaria em um verdadeiro caos para toda a Humanidade e nenhuma organização política conseguiria sobreviver à falência que provocaria.
Todo homem de bem, profitente de qualquer religião que seja, não deve, pois, julgar pelas aparências, movido pela simpatia ou antipatia, pelos interesses políticos, pelas rivalidades de qualquer espécie, pelas filiações religiosas, enfim, por todos os fatores que atuam na formação da opinião pública e que, na maioria das vezes, somente se prestam para conduzir ao passionalismo irracional e a injustiças inomináveis.
Qualquer julgamento, sobretudo aqueles da competência da Justiça Criminal, deve procurar sempre o amparo da verdade histórica, embora essa nem sempre se identifique com a verdade processual.
Nos casos duvidosos, mal esclarecidos ou tendenciosos, a consciência jurídica, calcada na noção do justo e do injusto que cada um traz dentro de si, não autoriza uma decisão condenatória. Não se trata, porém, de apanágio exclusivo de alguma confissão religiosa, porquanto nada mais é do que a simples aplicação de um brocardo jurídico de tradição milenar.
É o famoso in dubio pro reo do Direito Romano, ainda de uso corrente na atualidade, cuja existência é anterior ao Cristianismo e que, em face disso, não pode ser invocado para justificar a inverídica proibição de julgar e condenar imputada aos espíritas.
Setembro 2006 • Reformador