WASHINGTON LUIZ N. FERNANDES
Muito interessante lembrarmos algumas opiniões, classificadas na historiografia humana como heresias religiosas (lat. haeresis e gr. hairesis – escolha, propensão), desde os primeiros séculos do Cristianismo.
Por heresias religiosas devemos entender as idéias que estiveram contrárias à fé estabelecida como oficial, tidas como falseadoras de Revelações Divinas. E os defensores destas afirmações, por contrariarem os dogmas estabelecidos pelas religiões dominantes, foram por isso considerados demoníacos, e muitos pagaram com a própria vida o crime de dizerem suas opiniões.
Ocuparnos-emos só dessas heresias doutrinário-religiosas, não nos detendo nas que tratavam das Leis Naturais como, por exemplo, as do físico e astrônomo italiano Galileu Galilei (1564-1642), que afirmava que a Terra é que girava e não o Sol, e por dizer esta verdade científica quase morreu queimado.
Constrange-nos um pouco escrever sobre isso, apresentando lamentáveis registros históricos, mas o fazemos por dever de fidelidade à verdade dos fatos, pois acreditamos que este estudo oferece valioso material de pesquisa e reflexões.
É possível que esse tipo de atentado à liberdade de pensamento ainda ocorra em nossos dias, mais no plano moral do que material, sob a justificativa da defesa da verdade, mas por certo traduz da mesma forma a intolerância e o personalismo.
Será de cansar ver tantos “ismos” (sufixo que indica doutrina filosófica ou religiosa) juntos, mas necessário apelar para a paciência dos leitores.
Houve heresias que realmente estavam equivocadas, podendo-se citar o Adocionismo (séc. II), que professava que Jesus não era Filho de Deus desde a eternidade, mas só a partir do batismo; o Marcionismo, doutrina dualista do gnóstico Marcião (85-160) que distinguia entre Deus-Pai e um criador ou demiurgo, sendo Jesus-Cristo o enviado do primeiro para livrar a Humanidade do segundo rejeitando o Antigo e o Novo Testamentos, com exceção do Evangelho de Lucas e de algumas epístolas de Paulo. Seus seguidores tornaram-se maniqueus, da doutrina Maniqueísta, fundada por Manes (216-274), baseada na existência de dois princípios opostos, o Bem e o Mal. Vale lembrar que Santo Agostinho (354-430), quando jovem, foi maniqueu por nove anos; o Catarismo, seita dos Cátaros, iniciada no séc. XI, que da mesma forma acreditava no dualismo do Bem e do Mal; o Montanismo, doutrina religiosa do séc. II, também conhecida como heresia frígia, fundada por Montano (séc. II), que se dizia combatidas. Elas se opunham a orientações dogmáticas criadas pelos próprios homens e, em verdade, estes dogmas é que mereciam a condição de falsear o que é certo.
Rechaçadas com impiedade e intolerância, pelos que detinham o poder, e se arrogavam a condição de donos da verdade, foram aplicadas a seus defensores penalidades civis, excomunhão, cruéis penas e até a morte. A Inquisição foi criada, no séc. XII, objetivando combater as heresias, especialmente o Catarismo.
Aquele que tivesse ciência de algum comportamento mencionado em edital inquisitorial, e não o viesse revelar, seria perseguido como fautor de hereges, isto é, pelo crime de acobertar culpas de hereges. Depois de preso, o réu era submetido a longos interrogatórios, não lhe sendo comunicado o motivo de sua prisão, nem o crime de que era acusado, ou qual o seu denunciante.
Em enciclopédias brasileiras e internacionais, encontramos as questões heréticas tratadas ao sabor das crenças dos colaboradores destas obras, por vezes claramente partidários das religiões dogmáticas dominantes, e por isso concordando em alguns casos com estas idéias.
Logo no início do Cristianismo, admiramos o conteúdo de algumas dessas chamadas heresias, que retrataram em verdade grande lucidez de seus defensores.
Heresias que eram verdadeiras
Somente a título de ilustração, vamos comentar algumas dessas opiniões, comparando com os esclarecimentos trazidos pelo Espiritismo:
– Monarquianismo (ou Modalismo ou Sabelianismo): Foi a negação da trindade das pessoas divinas, considerados o Filho e o Espírito Santo como modos do Pai. O Monarquianismo, rejeitando a separação dessa chamada divina substância, foi criado por Noets (140-200), e teve em Sabélio (séc. II), da Líbia, um dos principais divulgadores, tendo sido este excomungado em Roma, pelo Papa S. Calisto I.
– Arianismo: Negava a divindade de Jesus. Considerada uma das primeiras grandes heresias cristãs, tendo em Ário (c. 250-336 d.C.) seu iniciador. Segundo ele, Jesus não seria co-eterno e da mesma substância do Pai, mas foi criado por Ele. Ele tem um começo, mas Deus não. Esta doutrina foi rejeitada pelo Concílio de Nicéia (325), e condenada pelo Concílio de Constantinopla (381). Propagou-se principalmente entre os povos germânicos (ostrogodos, visigodos, burgúndios). Segundo Ário, nos primeiros textos dos quatro Evangelistas, o Filho aparece subordinado ao Pai, o que destrói a igualdade da Santíssima Trindade. Portanto, Jesus não seria de modo algum Deus.
– Socinianos: Uma forma de arianismo, do séc. XVI. Este nome deveu-se a Lello Socin (1509-1562), tido como heresiarca, que negava a divindade de Jesus, a existência do Espírito Santo e a utilidade dos Sacramentos.
– Nestorianismo: No tocante a uma de suas afirmações, sobre Maria de Nazareth, o Nestorianismo, fundado por Nestório (380-451), patriarca de Constantinopla, afirmava ser ela somente a mãe de Jesus e não mãe de Deus. O Nestorianismo foi condenado pelo Concílio de Éfeso, em 431.
– Espiritismo: Admite a existência de um Deus único, inteligência suprema do Universo, Causa Primária de todas as coisas. Jesus, como Ele mesmo o disse, mais de quarenta vezes em o Evangelho, era o Filho de Deus, como todos nós o somos, porém, Ele era mais evoluído, e veio nos ensinar o Evangelho. Maria, e também José, foram os pais de Jesus e, diretamente inspirado pelo Espírito Santo, e pregava uma próxima vinda corporal de Jesus; o Docetismo (de Valentin, séc. II) e o Apolinarismo (de Apolinário, séc. IV), segundo os quais Jesus teve um corpo aparente, negando a realidade de sua crucificação e sua alma humana; o Priscilianismo, doutrina do cristão espanhol Prisciliano (335-385), que apesar de ser antitrinitário (contra a Santíssima Trindade), defendeu o Gnosticismo e o Maniqueísmo, sendo um dos primeiros a ser executado por defender suas idéias.
Mas há outras idéias, que veremos a seguir, as quais estavam totalmente certas, conforme demonstrado pelo Espiritismo, e da mesma forma foram por isso, ela não é mãe de Deus, que é o Criador de todas as coisas, mas a genitora de Jesus. Além do que, se Maria fosse mãe de Deus, Ele não seria mais o Criador de tudo, tendo sido Ele por ela criado.
O Espírito Santo pode ser entendido como uma plêiade de Espíritos Superiores, que colaboram para o progresso do mundo.
A Santíssima Trindade, que identifica Pai, Filho e Espírito Santo numa só unidade, definindo um no outro, nada mais é do que um dogma de origem totalmente material, criado pelos homens e não por Jesus, que não trouxe nenhuma orientação dogmática para o comportamento.
– Waldenses: Foi um movimento iniciado pelo religioso francês Peter Waldo (ou Valdo), no séc. XII, que defendia a pobreza e a simplicidade, em oposição à idéia de religião associada ao luxo que existia em seu tempo, isto um pouco antes da odisséia franciscana em Assis. Waldo pronunciou sua Profissão de Fé, e foi perseguido e condenado pela cúpula religiosa. Waldo combateu também a adoração ao crucifixo, a idéia de as igrejas considerarem-se sagradas, os sacramentos e o purgatório. Vale lembrar que os sacramentos são atos rituais que visam a santificar as pessoas envolvidas, e seus defensores afirmam que eles foram instituídos por Jesus, o que não é verdade, pois Ele não trouxe nenhum ritual.
– Pelagianismo: Seita tida como herética, iniciada pelo monge e teólogo britânico Pelágio (360-425), negou a necessidade da graça, realçando as forças do livre-arbítrio; é por este modo que cada um vai para o céu, a depender de seus esforços. Negou totalmente que a salvação fosse uma graça. O Pelagianismo foi condenado pelo Concílio de Éfeso (431).
– Albigenses: Seita iniciada em França, no séc. XII, com uma rude oposição ao clero, contra o pagamento dos dízimos, condenava os religiosos que estivessem voltados mais às coisas materiais, pregava contra os sacramentos, combatiam o batismo das crianças, julgavam desnecessários os altares e imagens de santos, com destaque para Pedro de Bruys. O Concílio de Albi (1176) condenou esta seita.
– Donatismo: Crença de Donato (270-355), bispo da Numídia, que não atribuía nenhum valor aos sacramentos, tendo em vista a indignidade dos sacerdotes e bispos.
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O Espiritismo demonstra a total verdade destes pensamentos. Inicialmente, relembra a mensagem do Cristo, no seu mais puro entendimento. No Prefácio de O Evangelho segundo o Espiritismo, de Allan Kardec, assinado por O Espírito de Verdade, no segundo parágrafo consta: Eu vos digo, em verdade, que são chegados os tempos em que todas as coisas hão de ser restabelecidas no seu verdadeiro sentido...
Todas as coisas, que deviam ser restabelecidas no seu verdadeiro sentido, devemos entender, sem dúvida, que são o Evangelho na sua mais simples moral, deixando de lado os aspectos cerimonial e ritualístico, que foram introduzidos pelos homens e não criados por Jesus. A missão de Jesus foi trazer e vivenciar as lições de amor, humildade, fraternidade, perdão e retribuir o mal com o Bem, e nunca trazer religião associada a sinais exteriores. Ele veio ensinar moral, não ritual. Imaginar que nos tornaríamos cristãos, através de uma cerimônia chamada Batismo, é desconhecer por completo o Evangelho.
A Doutrina Espírita explica que isto absolutamente não procede, ensinando que nos tornaremos cristãos somente se praticarmos a moral ensinada e repetida por Jesus, e não participando de qualquer cerimônia. Ele mesmo o diz (João, 14:15): Se me amais, guardai meus mandamentos...
Por isso também Ele, em outra ocasião, enfatizando o nosso livre-arbítrio, fala que, buscando, acharemos e, batendo, se nos será aberto (Mateus, 7:7 e seguintes), significando assim que temos um compromisso na ação e no trabalho, pois a fé sem obras é morta. (Tiago, 2:20.)
Como é comum acontecer, passados os anos e séculos, muitas dessas doutrinas tidas como heréticas incorporaram outros pontos doutrinários, que acabaram alterando as idéias iniciais, mas fica registrado o início destas lúcidas opiniões.
O Espiritismo, portanto, ratifica estas idéias primeiras, consideradas heréticas, e demonstra que elas traduziram a mais pura e simples verdade e, por isso, homenageamos estes grandes homens que souberam identificar nos primórdios do Cristianismo estes grandes erros religiosos, e quando nos referirmos a eles, que não sejam mais chamados de hereges ou heresiarcas, mas sim lúcidos pensadores...
Algumas das penas para os que defenderam suas opiniões, sendo considerados hereges:
– Em 285, foram mortos vários Priscillianos, por motivos de heresia, por
ordem dos bispos;
– em 782, a rogo do Papa Estevam III, Carlos Magno descabeçou, num dia, cinco mil saxões em Verden, por recusarem o batismo. Pouco depois mandou queimar muitas pessoas que preferiam o canto ambrosiano ao gregoriano;
– em 1007, foram queimados vivos, em Orleans, muitos heréticos;
– em 1134, Peter de Brucys foi queimado vivo no Languedoc por ter negado o batismo das crianças e a transubstanciação;
– em 1155, Arnaldo de Brescia foi enforcado por ter professado a doutrina de que o clero não deve viver senão de dons voluntários;
– em 1160, os Valdenses, reformadores, muitos foram queimados vivos; cerca de três mil morreram em França, entre eles crianças de pouca idade;
– em 1209, os Albigenses, outros reformadores, que aderiram a uma forma de cristianismo menos corrupto, foram trucidados por heresia em Beziera;
– os judeus, nos reinados de Ricardo I, João e Henrique III, foram trucidados, torturados e, em 1290, foram expulsos da Inglaterra, tendo seus bens confiscados;
– em 1222, um sínodo fez queimar um herético em Oxford;
– em 1300, Sagarelli, fundador de uma seita análoga à dos modernos Shakers, foi queimado em Parma;
– em 1302, incineraram a monarquia de Dante. Ele mesmo, condenado à fogueira, fugiu e foi excomungado depois de sua morte.
– (Somente alguns dos inúmeros fatos citados na obra de Susana Gay, da vida de Fletcher, e retirados do jornal O Mundo Oculto, Campinas (SP), nov./1907, p. 4.) l